sexta-feira, 17 de julho de 2009

UM TELEFONEMA ANÔNIMO


Estou há vinte e cinco anos e seis meses no serviço público. Aprendi a levar uma vida pacata, digna e conformada. Meu caminho é de casa para o trabalho e vice-versa. Raras são as vezes em que viajo com a família de férias, pois sou obrigada a adaptar o orçamento doméstico aos meus parcos proventos há anos sem aumento. Posso até me vangloriar, uma vez que, mesmo não tendo feito curso superior, sou chefe da repartição estadual de uma pequena cidade no interior.

Nunca sonhei alto demais, para não cair do cavalo. Sou uma daquelas pessoas simples que vai à missa aos domingos, assiste ao futebol e, nas ocasiões especiais, bebe uma cervejinha, tudo moderado. Não sou nenhum santo: por detrás de meus óculos, aprecio a beleza feminina, ainda que ao longe e sem comentários. Com quarenta e nove anos de idade e vinte de casado, sou o que todos chamam de acomodado. Sou um cumpridor dos deveres conjugais, embora minhas relações sexuais não sejam cheias de ardores e volúpias desses casais das telenovelas. Conservo a afetividade íntima apenas com minha mulher, por absoluto estado de espírito em me sentir bem.

Mas aconteceu-me um fato inusitado. No início, pensei que fosse trote e cheguei a desligar o telefone de maneira rude. A voz era feminina e um dia me pediu um pouco de paciência para escutá-la. Disse que há tempos me observava, que me achava misterioso e, por isso, encantador. Acrescentou ainda que meu andar revelava alguém solitário, porém, sensível e generoso.

Outros telefonemas se sucederam, sempre às quatro horas da tarde. Insisti em saber a identidade da dona daquela voz e ela disse-me que não podia dar tal informação, pois era casada. Ora, caro leitor, depois da menção desse fato, minha curiosidade a la Sherlock Holmes ficou deveras excitada, a ponto de ocupar e muito meus pensamentos com sutilidades de improváveis buscas em desvendar o perfil psicológico da mulher que me telefonava.

O telefonema das quatro de toda tarde, com uma voz doce e sensual, capaz de descobrir em mim qualidades esquecidas e inventar outras tantas, encaixou-se às minhas preocupações. Eu ficava na expectativa de lhe ouvir dizer que gostava de cinema, teatro e ballet. Acontecia às vezes de ela emudecer, quem sabe por conta de alguém a entrar na sala. Por matreirice ou não, suas informações eram em doses curtas. Queixava-se de que era um talento desperdiçado. Morava no interior, não conseguia emprego e não passava de uma empregada doméstica da própria família. Acusava o marido de pensar somente em ganhar dinheiro e não reparar nela. Eu ficava cá com meus botões, será que minha mulher não pensa a mesma coisa de mim?

Vários meses e aquela voz pairando sobre minha cabeça, era como uma sombra, onde quer que eu fosse, ela me veria. Dizia ter me visto na padaria e na festa das crianças na escola. Sua calça nem combinava com a camisa. Passei a me preocupar com a opinião daquela pessoa invisível. Ela argumentava que eu deveria ingressar na faculdade, pois me considerava inteligente e queria um bom futuro para mim.

Comecei a desconfiar de que ela morava no trajeto de minha casa para a repartição. talvez ela me olhasse pela veneziana. Em seus últimos telefonemas, prometeu se identificar e acabava tergiversando. Resolvi engendrar outra tática, uma vez que meu amadorismo de detetive se mostrava um fiasco. Instalei um aparelho no telefone para identificar todas as chamadas. Então matei a charada. Nada lhe contei e nossos diálogos se mantiveram. Eu lhe propus:

- Se, por acaso, eu acertar o seu nome, você me promete vir ao meu escritório?

Ela aceitou o desafio e, naturalmente, eu disse-lhe seu nome. Ela respirou profundamente e passou um minuto em silêncio:

- Irei sim, às quatro, mas não posso precisar o dia.

Entendi a conveniência do dia e passei a lhe aguardar ansiosamente. Algum dia depois disso, minha secretária anunciou que havia uma senhora querendo falar comigo. Pedi que a deixasse entrar e eis que me surge uma beldade. Devia ter uns trinta e cinco anos. estava com um desses vestidos colados que ressaltam as formas do corpo. Não tirou os óculos escuros.

- Estou nervosa, não repare...
- Fique à vontade. Tire os óculos.
- Não, por favor. Não sei como tive essa coragem pra vir até aqui.
- Na repartição andam muitas pessoas, ninguém vai notar algo diferente. É o melhor local para se conversar. Relaxe e tire os óculos.
- Por que você me pede isso?
- Para ver seus olhos. Tenho quase certeza de que são verdes.
Instintivamente peguei em suas mãos frias e ela correspondeu com um aperto forte.
- Assim, de perto, você é mais linda.
- Desse jeito, vou ficar encabulada...
- Se você não tirar os óculos, eu vou tirá-los.
- Cuidado, a porta...

Nesse momento, levantei-me e dei meia volta na chave sem fazer ruídos. Encaminhei-me em sua direção. Ao me aproximar, ela recebeu-me com um delicioso beijo na boca, coisa que há muito tempo não me acontecia. Sua timidez caiu por terra e o que se viu foi uma mulher alucinada, carente de afeto, com um desejo sexual à flor da pele. Em questão de segundos, ela estava completamente nua. foi quando seu celular começou a tocar.

- Não, meu amor. Estou no centro. Você também está por aqui?

Fiquei confuso, meio desorientado e cheguei a imaginar o marido dela ali do outro lado da porta. Imediatamente me recompus. Ela desligou o telefone e perguntou:

- O que foi que houve?
- Eu... eu... ia apenas tirar seus óculos.

Ilustração de Raisa Christina.
Texto publicado no livro "Temporal e Outros Contos",
de Saraiva Jr., Fortaleza: ABC Editora, 2002.

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